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Que desserviço (e atrocidade) é atacar uma abordagem, com informações falsas, para defender a outra

A ABPMC – Associação Brasileira de Ciências do Comportamento – vem a público manifestar veemente repúdio ao texto de Ingrid Gerolimich, “Que bobagem (e desserviço) é atacar a psicanálise”, publicado pela revista Carta Capital, dadas as desinformações que espalha acerca das terapias comportamentais e da análise aplicada do comportamento (ABA).

Com relação às terapias comportamentais, é afirmado que, “inspiradas no método Pavlov de treinamento de cães” (?), tais terapias são “depósitos de críticas” por colocar “mais ênfase no ajuste comportamental em si e menos no aprofundamento de uma consciência crítica em relação ao porquê de determinados comportamentos”.

Começando pelos equívocos e imprecisões históricas, as descobertas de Ivan Pavlov acerca do processo de condicionamento clássico não derivam de um método de treinamento de cães. Foram, em vez disso, fruto de serendipidade, isto é, de constatação não-planejada, ocorrida na década de 1920, em meio às pesquisas do cientista russo acerca da fisiologia da salivação, pelas quais fora laureado anos antes com o Prêmio Nobel, em 1904. Não há, portanto, um “método Pavlov” de treinamento de cães.

Pior que isso é a simplificação operada ao afirmar que as terapias comportamentais seriam “inspiradas” pelo fantasiado método. Desde, pelo menos, meados do século XX, o paradigma respondente (ou “pavloviano”) deixou de ser o enfoque principal de intervenções comportamentais, com as descobertas sobre condicionamento operante orientando nova ênfase às práticas terapêuticas. Nessa ênfase, do ensino de novas habilidades ao desenvolvimento de tecnologias que facilitam processos de aprendizagem, há um interesse crescente pela investigação de processos responsáveis pela gênese e manutenção da variabilidade comportamental, intimamente relacionada à criatividade. Logo, a insinuação de que técnicas de condicionamento operante serviriam apenas para produzir estereotipia – ou, nos termos usados no texto, “condicionar o comportamento dos pacientes a um formato robotizado e domesticado” – é, ironicamente, o único estereótipo a ser apontado aqui.

Mas não bastassem tais equívocos factuais, facilmente verificáveis, o texto vai além, salientando críticas segundo as quais as terapias comportamentais dariam ênfase ao “ajuste comportamental”, e não à “consciência crítica” sobre as causas do comportamento. Se, por um lado, os maus usos de técnicas derivadas das ciências comportamentais (como os de virtualmente qualquer outra ciência) constatou-se em diferentes momentos desde o seu estabelecimento, é também verdade que a denúncia a tais maus usos e a discussão sobre a necessidade de uma prática eticamente orientada é presente desde os primórdios da ciência comportamental.

Esse é um tema exaustivamente discutido por B. F. Skinner, expoente máximo do comportamentalismo, em seus textos filosóficos, bem como por seus sucessores mais diretamente envolvidos com contextos de aplicação e prestação de serviços, a exemplo de Israel Goldiamond. Com relação à questão da consciência, Skinner[i] nota que todo comportamento é, a princípio, “inconsciente” no sentido de que mantido por contingências efetivas mesmo quando não divisadas por aquele que se comporta: é a cultura, e agências por ela estabelecidas (dentre as quais figura a psicoterapia), que provê ao sujeito o fundamental repertório de (auto)descrição, munido do qual é capaz de desenvolver autoconhecimento e autocontrole. Com relação à questão do ajustamento, já num texto de 1965 Goldiamond[ii] criticava a heteronomia em intervenções terapêuticas, as quais, em sua ótica, deveriam sempre ter no horizonte a promoção da autonomia dos sujeitos envolvidos.

Adicionalmente a isso, num infeliz comentário sobre a análise aplicada do comportamento – chamada no texto de “método ABA” –, tal abordagem é descrita como “exemplo crítico deste modelo gerencial disciplinante das emoções”. Tal qual não há um “Método Pavlov”, tampouco há “Método ABA” especificamente relacionado, ou não, às intervenções desenhadas para indivíduos com TEA (Transtorno do Espectro Autista). ABA (Applied Behavior Analysis) é o campo aplicado da ciência do comportamento, e que tem como uma de suas dimensões definidoras a investigação e práticas vinculadas a questões que apresentem relevância social para o indivíduo ou grupo envolvidos; além disso, é preconizado que essas práticas sejam sujeitas à validação social. Per se, essas premissas não correspondem a “práticas normatizadoras … sem nenhum respeito à sua constituição como sujeitos de afetos”.

Além disso, também é importante ressaltar que intervenções de base analítico-comportamental voltadas para indivíduos com TEA não estão relacionadas a um “modelo gerencial das emoções” e nem a um “formato robotizado”. No primeiro caso, quanto ao gerenciamento de emoções, é mister esclarecer que independente do nível de suporte do indivíduo com TEA, o delineamento e manejo terapêuticos são voltados para o florescimento e valorização de competências sociais envolvidas desde as fundamentais relações diádicas até a sensibilização a engajamentos sociais da forma mais ampla possível; para tanto, nesta jornada, está presente, por exemplo, o desenvolvimento da comunicação/linguagem, repertórios simbólicos, autoconhecimento de eventos privados e públicos, que em nada envolvem um gerenciamento de emoções extrínseco à vontade do indivíduo.

A crítica a um suposto “formato robotizado” de intervenções analítico-comportamentais em TEA é igualmente improcedente. Em intervenções de base analítico-comportamental, a compreensão do que é particularmente importante, fundamental, valioso e reforçador para cada um deve estar no cerne no delineamento; é a partir desta premissa, que é base da ciência do comportamento, que o analista do comportamento aplicado trabalha. Propósitos como Individualização, Relevância Social, Validação Social e, Assentimento em nada convergem ou dialogam com práticas análogas à “robotização”.

Impossível deixar de notar a ironia no desfecho do artigo, o qual, após classificar como “sensacionalista” o trabalho dos autores do livro “Que bobagem!” (Natália Pasternak e Carlos Orsi, dois competentes divulgadores científicos cuja obra intenta alertar incautos sobre falsificações da ciência), encerra notando que “precisamos de unidade e foco para seguir defendendo o conhecimento científico a favor da vida que segue sendo tão atacado por grupos extremistas e negacionistas”. Ora, como um texto que caricatura a prática de terapeutas comportamentais e de analistas do comportamento de modo tão rasteiro pode, poucos parágrafos à frente, clamar por unidade? E no que se refere à reivindicação por “foco” na defesa do conhecimento científico, parece-nos que foco falta a quem, num texto supostamente focado em defender um campo teórico, opta por atacar gratuitamente outro – o qual, cabe mencionar, desfruta de incomparável prestígio científico.

Numa última nota, solidarizamo-nos com os autores de “Que bobagem!”, Pasternak e Orsi, bem como aclamamos seus esforços pelo esclarecimento da população leiga acerca de estratégias típicas de embustes pseudocientíficos. Sua tenacidade ao mexer em tantos vespeiros é reminiscente da de outros que os precederam, a exemplo de Skinner, que integrou o Comitê para a investigação cética (CSICOP), responsável por desvendar casos de charlatanismo, alegações de paranormalidade, fenômenos extraordinários e afins. Ao ser condecorado com o prêmio Humanist of the year, em 1972, Skinner[iii] encerrou seu discurso com considerações ainda muito atuais, acerca de como uma abordagem científica sobre o comportamento humano é fundamental a qualquer um que abrace uma agenda humanista – e por isso reservamo-nos o direito de encerrar citando-o diretamente:

“. . . podemos agora trabalhar mais eficazmente para o bem do indivíduo, em benefício do maior número de pessoas, e para o bem da cultura ou da humanidade como um todo. Estas são, certamente, preocupações humanistas, e ninguém que se chame de humanista pode se dar o direito de ignorá-las . . . Há muito a ser feito, e rapidamente, e nada menos que a prática ativa de uma ciência do comportamento bastará.”

Diretoria ABPMC

Conselho Eleito ABPMC

Comissão de Desenvolvimento Atípico

César Rocha – Sócio ABPMC


[i] Skinner, B. F. (1969). Contingencies of reinforcement. Appleton-Century-Crofts.

[ii] Goldiamond, I. (1965). Justified and unjustified alarm over behavioral control. In O. Milton (Ed.), Behavior disorders: Perspectives and trends (pp. 237–261). J. B. Lipincott.

[iii] Skinner, B. F. (1978). Humanism and behaviorism. Em B. F. Skinner, Reflections on behaviorism and society, pp. 48–55, Prentice-Hall. Originalmente publicado em The Humanist (1972).