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Combater a cultura do estupro também é trabalho para as analistas do comportamento

Consternados com os últimos acontecimentos, a diretoria da ABPMC – Associação Brasileira de Psicologia e  Medicina Comportamental – solicitou ajuda ao Coletivo Feminista Marias & Amélias de Mulheres Analistas do Comportamento na elaboração de uma nota, em representação dos analistas do comportamento. 

 “Mas eu escuto sobre estupros um por um por um por um por um, que também é como eles acontecem. Estas estatísticas não são abstratas para mim. (…) Está acontecendo agora enquanto eu falo. E está acontecendo por um simples motivo. Não há nada de complexo e difícil sobre o motivo. Homens estão fazendo isso, por causa do tipo de poder que homens têm sobre mulheres. Esse poder é real, concreto, exercido de um corpo para outro corpo, exercido por alguém que sente que tem o direito de exercer isso, exercido em público e em privado. É a soma e substância da opressão das mulheres.” (Andrea Dworkin, Eu quero uma trégua de 24 horas sem estupro.)
 
No dia 21 de maio de 2016, um sábado, uma jovem mulher de 16 anos foi estuprada por 33 homens. Três dias depois, um vídeo com imagens dessa jovem, nua, sangrando e sendo manipulada por homens foi postado nas redes sociais. No vídeo ela aparece rodeada por vários homens rindo, ao fundo, e relatando o que haviam feito com ela. Em poucas horas, o vídeo “viraliza” nas redes sociais e nos aplicativos de mensagens. Vários setores da sociedade se mobilizaram em torno do caso e a polícia identifica e localiza alguns dos autores do crime. Um dos acusados chega à delegacia sorrindo para a imprensa. O delegado do caso faz perguntas absolutamente irrelevantes para a apuração do crime, mas que têm em seu conteúdo a clara função de culpabilizar a vítima. A imprensa escrutiniza a vida da jovem, como se qualquer comportamento desviante da regra social fosse desculpa e justificativa para a violência por ela sofrida. O que chama a atenção neste caso, como na maioria dos crimes de estupro, é como as contingências funcionam de forma diferente para as vítimas e para os agressores.
Esse caso de estupro coletivo foi alçado à categoria de assunto nacional pela mídia, mas não é, de forma alguma, um acontecimento incomum. É apenas pouco notabilizado. De acordo com os dados do Fórum de Segurança Pública de 2014, uma mulher é estuprada no Brasil a cada 11 minutos, em média. Isso quer dizer que no tempo que vai levar para você ler este texto, uma mulher está sendo estuprada. São cerca de 130 mulheres estupradas por dia. O estudo “Estupro no Brasil: uma radiografia segundo os dados da Saúde”, do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), indica que somente 10% dos casos são denunciados. Menos ainda são investigados, e quase nenhum criminoso é punido. A violência sexual contra a mulher está estruturalmente instalada na nossa sociedade, é epidêmica e faz parte da nossa cultura.
Uma breve consulta aos dados disponíveis sobre a violência contra as mulheres já indica que nossa cultura é permissiva quanto à violência contra a mulher. As práticas culturais que permitem e reforçam o estupro estão vivas e se perpetuando, são práticas de uma cultura do estupro. A violência contra meninas e mulheres, apesar de uma grave violação dos direitos humanos, é uma prática recorrente. No Brasil, segundo a (infelizmente extinta!) Secretaria de Políticas para as Mulheres do Ministério das Mulheres, da Igualdade Racial e dos Direitos Humanos, nos dez primeiros meses de 2015, foram realizadas 63.090 denúncias de violência contra a mulher, 31.432 corresponderam a denúncias de violência física (49,82%), 19.182 de violência psicológica (30,40%), 4.627 de violência moral (7,33%), 1.382 de violência patrimonial (2,19%), 3.064 de violência sexual (4,86%). A violência contra a mulher é sistemática e pervasiva na sociedade como um todo, e o perpetrador é, na maioria esmagadora e absoluta dos casos, um homem (embora o inverso não seja verdadeiro – entre os casos de todos os tipos de violência cometida contra homens, o perpetrador continua sendo homem).
E o que nós, analistas do comportamento, temos a dizer (e a fazer) sobre isso? Qual será o nosso legado para instalação de uma cultura de igualdade social?  Quando estabeleceu as bases teóricas e conceituais para o estudo das culturas, Skinner (1953) propôs uma análise do conjunto de contingências de comportamento apresentadas, mantidas e replicadas por um grupo de pessoas. Em recente artigo, de Rose (2016) acrescenta ao assunto e define cultura como “comportamento adquirido pelos seres humanos enquanto membros de grupos sociais”. No mesmo sentido, Dittrich (2004) também sistematizou e operacionalizou a manutenção e transmissão das práticas comportamentais de uma cultura como “operantes (ou conjuntos de operantes ligados por contingências entrelaçadas) reforçados por certa cultura e transmitidos entre as sucessivas gerações desta cultura”.
O feminismo trata destas questões há muito tempo e chama o conjunto das práticas violentas contra a mulher de cultura do estupro, que é definida da seguinte forma:
“um conjunto complexo de crenças que encorajam agressões sexuais masculinas e sustentam a violência contra a mulher. É uma organização social em que a violência é vista como sensual e a sexualidade como violenta. Na cultura do estupro a mulher percebe a ameaça da violência como um continuum que vai desde comentários sexuais até o contato sexual e o estupro. A cultura do estupro tolera o terrorismo físico e emocional contra a mulher como norma. (…) Em uma cultura do estupro tanto homens como mulheres assumem que a violência sexual é um fato da vida, inevitável… Porém, muito do que aceitamos como inevitável é, de fato, a expressão de valores e atitudes que podem ser modificados” (Buchwald, 1993).
Cultura do estupro (como qualquer analista do comportamento pode concluir) não se refere a algo etéreo. O termo se refere a um conjunto de práticas culturais que não são nada mais do que comportamentos de indivíduos em grupo. Quando falamos de cultura do estupro, estamos falando de um conjunto de práticas vigentes na sociedade. Práticas mantidas por reforçamento e transmitidas às próximas gerações; contingências que ensinam sistematicamente os membros do grupo a não só a deixar de punir/extinguir adequadamente os comportamentos violentos e abusivos de homens em relação a mulheres, como ensinam e mantêm a prática de reforçar esses comportamentos agressivos.
O que queremos dizer com isso é que a cultura do estupro, como o nome já alude, está no terceiro nível de seleção do comportamento. Diversas pesquisas e estudos sugerem que várias práticas largamente disseminadas na nossa cultura fazem parte das classes de comportamentos que estamos classificando como cultura do estupro. Violência e sexo são diretamente associados pela indústria da pornografia, intrinsecamente ligada à educação sexual dos homens na nossa sociedade. Bridges e cols. (2010) analisaram 304 cenas de pornografia disponíveis na internet e computaram que 88,2% das cenas continham algum tipo de agressão ou violência física e 48,7% continham violência verbal. Na absoluta maioria das cenas, a violência partia de homens e era dirigida a mulheres. Lim, Carrotte e Hellard (2016) realizaram uma meta-análise de 46 artigos sobre pornografia e violência sexual e concluíram que a exposição à pornografia aumenta o risco de engajamento em comportamentos sexuais desviantes (31% de aumento no risco), comportamentos violentos e crimes sexuais (22% de aumento no risco), e aceitação de mitos sobre o estupro (31% de aumento no risco). Generalizações dessa associação entre sexo e violência são recorrentes em todos os tipos de mídia, nas propagandas e peças de marketing, na moda, na música, no cinema e nas séries e programas de TV, nos livros, nos quadrinhos e na ficção em geral. Também é corriqueira na linguagem do cotidiano, nas piadas, na maneira como se fala da mulher, na maneira como os homens se relacionam com as mulheres e na maneira como as instituições e o Estado se relacionam com as mulheres.
Como analistas do comportamento, sabemos que os comportamentos são mantidos pelas suas consequências. Enquanto não modificarmos as contingências sob as quais os indivíduos envolvidos nestes crimes se comportam, estes continuaram a acontecer. O primeiro passo para modificar estas contingências é identificá-las, descrevê-las claramente e analisá-las de forma adequada. Enquanto continuarmos a ignorar os dados e a culparmos as vítimas pelos crimes, a cultura permanecerá intacta silenciando, subjugando, violentando e matando mulheres. Temos o suporte de uma teoria sólida, práticas largamente embasadas em evidências e procedimentos para estudar e intervir em práticas sociais e planejar culturas. É nosso imperativo ético usar o conhecimento acumulado pela Análise do Comportamento para intervir e modificar a cultura do estupro. Algumas de nós já começamos. Quando você vai começar?
*Autoria: Marcela Ortolan, Ana Arantes, Izadora Perkoski, Amanda Morais e Aline Couto (Coletivo Feminista ‘Marias & Amélias’ de Mulheres Analistas do Comportamento)
 
Referências:
Bridges, A. J., Wosnitzer, R., Scharrer, E., Sun, C., & Liberman, R. (2010). Aggression and sexual behavior in best-selling pornography videos: A content analysis update. Violence Against Women, 16(10), 1065-1085.
Buchwald, E. (1993). Seduced by violence no more. Em: Emilie Buchwald, Pamela R. Fletcher, e Martha Roth, (Eds.), Transforming a Rape Culture. Minneapolis: Milkweed Editions.
de Rose, J. (2016). A importância dos respondentes e das relações simbólicas para uma análise comportamental da cultura. Acta Comportamentalia, 24(2), 201-220.
Dittrich, A. (2004). Behaviorismo radical, ética e política: Aspectos teóricos do compromisso social. Tese de doutorado, Universidade Federal de São Carlos, São Carlos, SP.
Fórum Brasileiro de Segurança Pública. (2014). 8º Anuário Brasileiro de Segurança Pública. Disponível em: <http://www.forumseguranca.org.br/storage/download//anuario_2014_20150309.pdf>. Acesso em: 30 de maio de 2016.
Ipea (2014).Estupro no Brasil: uma radiografia segundo os dados da Saúde. Disponível em: <http://www.ipea.gov.br/portal/images/stories/PDFs/nota_tecnica/140327_notatecnicadiest11.pdf>. Acesso em: 30 de maio de 2016.
Lim, M.S.C., Carrotte, E.R., & Hellard, M.E. (2015). The impact of pornography on gender-based violence, sexual health and well-being: what do we know? Journal of Epidemiology and Community Health, 70(1), 3-5.
Secretaria de Políticas para as Mulheres do Ministério das Mulheres, da Igualdade Racial e dos Direitos Humanos. (2015). Balanço da Central de Atendimento à Mulher. Disponível em: <http://www.spm.gov.br/central-de-conteudos/publicacoes/publicacoes/2015/balanco180-10meses-1.pdf>. Acesso em: 30 de maio de 2016.
Skinner, B. F. (1953). Science and human behavior. New York: Free Press.
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(Os links acima foram compilados por Marina Ferreira no Facebook: https://www.facebook.com/duartemarina/posts/10209257321141212 )