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Equívocos sobre o comportamentalismo espelhados pela internet e desserviço à comunidade

Resposta ao artigo: Pais comportamentalistas: os danos que causam aos seus filhos, de Julia Tort traduzido, adaptado por Stael F. Pedrosa Metzger.

Por Joana Singer e Denis Roberto Zamignani 

O site familia.com.br propõem-se a trazer ao público uma série de artigos que têm como foco questões da vida familiar, incluindo a educação de filhos. Como se trata de uma área em que quase todos têm alguma familiaridade, envolve alto risco de mal-entendido, afirmações gerais demais ou sem base em dados científicos. Esse é o caso do artigo “Pais comportamentalistas: os danos que causam a seus filhos”, de Julia Tort, traduzido por Stael F. Pedrosa Metzger. Como tanto outros publicados na internet, e mesmo em mídias tradicionais (jornais, revista), o artigo de Julia Tort apresenta a teoria comportamental de forma equivocada, distorcida. Assim, causa desserviço à comunidade que supostamente deveria informar. 

A autora começa bem: afirma que recompensas e punições que pais usam com filhos podem causar distúrbios psicológicos graves e afetar o comportamento emocional das crianças. Adiante, destaca que seres humanos são complexos, pessoas são únicas, dotadas de características particulares. Até aqui, tudo bem – a obviedade, ao menos, não traz incorreções. É ao desenvolver esses pontos que a autora comete erros grosseiros e, como tantos outros autores, desconhecedores da proposta comportamentalista, presta um desserviço à comunidade leiga, que corre o risco de basear-se em informações equivocadas na educação de crianças e adolescentes. 

Apresentamos dois pontos controversos do artigo de Julia Tort.  

1. “Embora as crianças sejam gêmeas ou irmãos que vivem sob o mesmo teto, com os mesmos pais e nas mesmas circunstâncias, cada uma têm um cérebro diferente, seus canais perceptivos operam de forma diferente e, portanto, suas percepções não são iguais, isto é o que envolve a genialidade humana – ‘Você é único e irreplicável’”.

A unicidade e a complexidade individual vão muito além do fato de termos cérebros diferentes uns dos outros. Construímos, ao longo da vida, uma história única de relação com o mundo – físico e social. Cada organismo (único) interage, do nascimento à morte, com o mundo (processo único, por ser fluído e passível de modificação a cada instante).  Organismo – incluindo cérebro – e mundo se modificam o tempo todo, num processo contínuo, compondo a idiossincrasia, a singularidade e a diversidade  humanas. Esse aspecto é central na teoria comportamental.

A frase da autora sugere que pais guiados por essa teoria não são sensíveis a toda essa profundidade. Como destacamos anteriormente, não só a Psicologia Comportamental reconhece a complexidade do comportamento – aspecto central de sua teoria – como há mais de 80 anos apresenta o comportamento de seres humanos de forma muito mais complexa, profunda e completa que naquela noção descrita pela autora.  

Comportamento é tido como produto de interações de origens genéticas, história individual e cultural. É muito diferente da versão simplista apresentada pela autora.

2. “Quando você condiciona, tira a segurança”

Há muitos problemas nessa frase. Aparentemente, a palavra condicionamento ficou associada ao cachorro de Pavlov que saliva com a campainha que foi condicionada ao alimento. Esse tipo de condicionamento é chamado pela Psicologia Comportamental de reflexo ou respondente. É o caso, por exemplo, da taquicardia que sentimos ao entrar em uma rua na qual sofremos um assalto – aquele espaço físico foi condicionado a uma situação ameaçadora, gerando reações fisiológicas, mesmo na ausência do assaltante. Há outro tipo de condicionamento, denominado operante que decorre da associação entre o que fazemos no mundo e as consequências que, por sua vez, o mundo nos traz. Quando aprendemos a andar, ocorre um tipo de condicionamento: a forma como posicionamos o corpo, os movimentos das pernas e o tipo de pisada produzirão uma consequência: a locomoção pelo mundo. Apresentada assim, a palavra condicionamento parece simplista: parece tratar de eventos de pouca profundidade. Entretanto, essa simplicidade é aparente. Talvez decorra do fato de perdemos de vista que comportamento é um processo contínuo. Desde os atos de levar comida à boca às sutilezas envolvidas na criação da Capela Sistina todos os comportamentos envolvidos nessas tarefas foram condicionados de forma complexa e única. 

Quando a autora afirma: “quando você condiciona, tira a segurança” mostra que não entendeu o que é condicionamento. Condicionamento é aprendizagem. E aprendizagem acontece o tempo inteiro. O mundo condiciona o tempo inteiro, estejamos atentos aos processos ou não. Estamos condicionados a chamar o elevador para que ele venha, a conversar de determinadas maneiras com as pessoas para que tenhamos uma interação social satisfatória, a falarmos sobre nossos sentimentos para alguns amigos para sermos aconselhados e abraçados. E, claro, podemos programar condicionamentos: salário e trabalho, estudos e notas, sucesso em um esporte e medalhas. Podemos, como sociedade, condicionar infrações de trânsito a multas, crimes a prisão e por aí vai. 

O condicionamento, como termo, não é bom ou ruim. Às vezes ele só é, sem que haja alguém o planejando. Ele pode construir comportamentos saudáveis ou pode produzir danos. Sendo um processo básico de aprendizagem humana, nós não podemos fugir do condicionamento operante, mas podemos planejar condições para desenvolver comportamentos socialmente relevantes de nossos filhos. Entretanto, a forma como programamos alguns condicionamentos merece, sim, ser discutida. A própria Julia Tort escreve: “Imagine alguém dizendo a seu filho: ‘Se você não obedecer, não vou mais gostar de você’ ou ‘vou lhe dar um presente’. Quando você condiciona amor, sem perceber estará minando a confiança e uma parte muito importante da sua segurança e identidade pessoal.”. Certamente um pai que ameaça retirada de amor como consequência à desobediência não foi orientado por um psicólogo comportamental (e, queremos crer, por nenhum psicólogo que se preze).  

Julia Tort é feliz ao falar sobre os malefícios das ameaças e punições. Há um grande corpo de conhecimento na Psicologia Comportamental com dados sobre as desvantagens dessa prática tão disseminada socialmente. A autora fala sobre os diversos possíveis efeitos emocionais (tais como ansiedade, medo e sensação de desamparo) bem como seus limites em termos de eficácia (de fato, em linhas gerais, a punição ensina o que não fazer, mas não constrói comportamentos saudáveis). A autora também acerta ao descrever os riscos de se utilizar prêmios arbitrários para construir comportamentos em crianças (premiar uma criança que fez seu dever de casa é delicado, controverso e também pode trazer efeitos colaterais indesejados). Julia Tort se equivoca ao insinuar (a partir do título de seu texto) que essas práticas seriam típicas de pais que adotam os ensinamentos da Psicologia Comportamental. Ao contrário disso,  pais orientados por psicólogos comportamentais rapidamente descobrem que a punição não é um método elegível para educação e que prêmios (sejam eles estrelinhas ou presentes) devem ser usados com parcimônia, em circunstâncias específicas. Tão logo seja possível o comportamento deve ser mantido pelas próprias consequências – o ‘prazer’ de ler uma poesia – e não ler um poema em troca de 30 minutos de videogame.

A Análise do comportamento é uma teoria construída com base em rigorosas pesquisas sobre o comportamento. Suas descobertas têm contribuído para o desenvolvimento de tecnologias eficazes para a solução dos mais diversos problemas humanos, sempre com a preocupação em verificar seus métodos por meio de pesquisas controladas, respondendo às exigências da sociedade por uma prática baseada em evidências. A ciência desenvolvida dentro dos princípios da Análise do comportamento visa o desenvolvimento do pleno potencial humano, em busca de uma sociedade mais justa e igualitária. 

A ABPMC, como a principal representante da comunidade de analistas do comportamento do Brasil, mantém uma série de canais com informações mais fidedignas sobre a própria área. E fica sempre à disposição para esclarecer a comunidade sobre princípios, métodos e pressupostos filosóficos da Análise do comportamento, chamada genericamente aqui de Psicologia comportamental.

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Joana Singer é doutoranda em Neurociências e comportamento pela Universidade de São Paulo (USP), psicóloga e mestre em Psicologia Experimental: Análise do Comportamento pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). É diretora do Paradigma Centro de Ciências e Tecnologia do Comportamento, onde atua também como psicóloga clínica. 

Denis Roberto Zamignani é doutor em Psicologia Clínica pela Universidade de São Paulo (USP), psicólogo e mestre em Psicologia Experimental: Análise do Comportamento pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). É professor do Programa de Mestrado Profissional em Análise do Comportamento Aplicada do Paradigma Centro de Ciências e Tecnologia do Comportamento e presidente da Associação Brasileira de Psicologia e Medicina Comportamental (ABPMC).