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Carta aberta à comunidade sobre o XXVI Encontro da ABPMC

Nós, da diretoria da Associação Brasileira de Psicologia e Medicina Comportamental (ABPMC), gestão 2017-2018, gostaríamos de compartilhar com a comunidade alguns acontecimentos do XXVI Encontro Brasileiro, realizado em Bauru (SP), entre 6 e 10 de setembro.
Desde o momento em que pensamos em realizar esse primeiro encontro da nossa gestão, sabíamos do desafio que teríamos. Consideramos a importância de questões sociais e sempre sentimos que nossa área produziu menos do que ela poderia nesse campo. A escolha pelo tema “Justiça Social e Políticas Públicas” surgiu justamente no sentido de promover inquietações e debates e, para possibilitar isso, incluímos convidados e palestrantes de outras áreas e de uma nova geração de analistas do comportamento para troca de conhecimento. Depois desses quatro dias de evento, sentimos, por diversas razões, que fomos bem-sucedidos. Tivemos mais debates e apresentações de trabalhos científicos sobre questões de raça, gênero e políticas públicas do que em todos os encontros anteriores já realizados. Como consequência, era esperado que surgissem questionamentos justos sobre como tradicionalmente a ABPMC vinha se constituindo como uma associação científica que, como qualquer instância de poder, é carregada de todos os problemas de uma sociedade estruturada em bases machistas, racistas e de grande exclusão social, como na sociedade brasileira.
Num primeiro momento, a tensão deste questionamento pode dar uma falsa impressão de que qualquer pessoa que estiver no gerenciamento da instituição esteja reproduzindo estas relações com todas as suas problemáticas. No entanto, ao examinar mais atenciosamente todos os eventos ocorridos durante o congresso, observa-se inequivocamente o quanto de prática/ação a inserção deste tema favoreceu (durante o encontro) e está favorecendo (nos debates após o encontro) à nossa comunidade. Infelizmente, no processo democrático, muitas ações são necessárias para mudar práticas opressoras e isto se dá, paradoxalmente, pela própria dinâmica da democracia. Não basta apenas “ocupar um lugar e resistir”. Este é um primeiro passo. Uma vez ocupado o lugar, o esforço para mudar as engrenagens do sistema passa, muitas vezes, por bancar as consequências de “pertencer temporariamente” a ele, consequências estas que envolvem severas críticas colocadas por quem está lutando fora dele, muitas vezes pelas mesmas pautas.
A construção de um evento mais democrático não irá acontecer de um dia para o outro. Mudar as engrenagens de dentro do sistema requer um trabalho de altíssimo custo de resposta e com muitos desafios no gerenciamento das mais diversas relações. Apesar de entender que é uma construção mais lenta do que todos nós gostaríamos, neste ano demos passos importantes nessa direção. Por exemplo:
(1) Antes mesmo de o evento ocorrer, a diretoria se abriu ao debate promovendo, através do Boletim Contexto, uma discussão dos valores da inscrição.
(2) Oferecemos 100 vagas gratuitas para alunos de graduação da UNESP, em contrapartida ao acordo firmado para a realização do evento no espaço da universidade. Nestas vagas, infelizmente apenas 55 alunos se inscreveram. Buscando o aproveitamento das vagas, estas foram ofertadas novamente, desta vez para alunos de pós-graduação; mas ainda assim não tivemos 100% das vagas ocupadas.
(3) Apenas pagamos hospedagem e alimentação diárias para quem estava trabalhando (voluntariamente, vale sempre lembrar) no evento. Convidados e membros dos conselhos nato e consultivo receberam apenas a inscrição e almoço no dia da sua participação no evento.
(4) Apoiamos iniciativas como “Adote um Graduando”, em que os palestrantes eram convidados a doar uma inscrição para um graduando, e a “Vakinha Marota”, em que houve arrecadação de fundos para o financiamento de 11 estudantes. Da Assembleia tivemos sugestões muito construtivas e elaboradas ali coletivamente, sugestões que vamos com toda certeza levar adiante, como a criação de vagas sociais disponibilizadas para pessoas após uma avaliação socioeconômica.
(5) O eixo principal do evento contou com simpósios e mesas que contemplaram de maneira destacada o debate sobre o racismo, protagonizadas por analistas do comportamento negros, e sobre direito à cidade, entre tantas mais que aconteceram.
Durante o evento, algumas pessoas levantaram questões nas redes sociais sobre o uso do espaço público para a realização de um evento pago. Sempre estivemos abertos ao debate e não foi diferente frente a uma discussão tão relevante quanto essa. Para tanto, realizamos um fórum no auditório principal aberto a toda a comunidade sobre o uso do espaço público da UNESP, onde estiveram presentes um membro da diretoria e um da comissão de organização local. Lá ouvimos os estudantes e contamos para eles o quanto fomos cuidadosos nessas questões que consideramos delicadas e importantes. De fato, esta é uma questão muito bem colocada e que precisa ser pensada seriamente para os próximos encontros. Durante todo o evento tentamos refletir sobre essas questões, mas percebemos, em face dos acontecimentos, que essas reflexões não foram suficientes ainda para dar conta dessa questão tão relevante.
Após o fórum público, no mesmo dia, essas mesmas questões foram trazidas como sugestão de pauta para a Assembleia da Associação por uma de nossas associadas. A pauta foi aceita após votação pela própria assembleia. Foi então realizado um debate no qual ocorreram muitas falas – tanto das proponentes como dos demais associados presentes. Muitos pontos de vista foram trazidos, muitas sugestões foram dadas. Tivemos momentos de ânimos exaltados por parte dos participantes da assembleia. A mesa coordenadora se manifestou reorganizando a discussão e impedindo que os ânimos exaltados prejudicassem o debate. Por fim, foi dado o encaminhamento da pauta, também pela hora avançada, para que as últimas pessoas inscritas para falar se manifestassem e logo após fosse colocada em votação a proposta da associada, que consistia em liberar todas as salas para a comunidade em geral no domingo de manhã. Como resultado tivemos 11 votos a favor, 9 abstenções e 36 votos contra a abertura das salas no domingo. Durante a assembleia, todo o processo permitiu lugar de fala a todas as partes, argumentos e ideias. Dentro das regras democráticas estabelecidas na Associação, foi realizado um debate justo e uma decisão via votação foi tomada. Houve um questionamento sobre se a contagem dos votos nesta pauta haveria sido uma forma de repressão. Nós entendemos que, pelo contrário, era uma forma de garantir justiça no resultado dada a pouca quantidade de pessoas na assembleia àquela altura, o que inviabilizaria uma tomada de decisão via contraste visual. De fato, a pauta perdeu por poucos votos, considerando a soma daqueles que foram contra mais as abstenções.
Consideramos que todas as colocações trazidas na Assembleia foram e são importantes para o processo de mudança das práticas da Associação e entendemos que isso é um marco importante na história das assembleias da ABPMC. Olhar para este acontecimento apenas levando em consideração a intensidade das topografias nos leva para longe de discutir o que é relevante e encaminhar o processo de mudança necessário para nossa comunidade. Nossas Assembleias, historicamente, têm sido marcadas por poucos debates, servindo mais como momento de aclamar algumas ações realizadas pelas diretorias. Acreditamos, enquanto gestão, que ela deva ser um espaço democrático de debates e construção de novas práticas – mudança nas engrenagens. Neste sentido, sentimos que demos um passo importante de amadurecimento político da Associação ao abrir espaço para que essas discussões aconteçam. Isto é motivo de grande orgulho para esta diretoria. Nós nos sentimos realizados.
No entanto, neste processo pós-congresso, temos sentido o peso do julgamento com alguns comentários e referências descontextualizadas. Mas entendemos que este julgamento (muitas vezes doloroso) é algo que precisamos bancar, porque embora sejamos agentes de mudança de dentro do sistema, entendemos que ao estar neste lugar, carregamos com ele toda a história de opressão relacionada ao acesso, produção e gerenciamento da ciência no Brasil. Um lugar historicamente branco, rico e masculino. Especificamente em relação à questão de raça, sabemos que não é acaso sermos todos de pele branca e, cientes dos nossos privilégios, abrimos o protagonismo da causa, o lugar de fala àqueles que realmente podem falar dela. Este é o nosso posicionamento. Foi isso que se viu durante o Encontro e durante o debate na assembleia da ABPMC. Nós nos sentimos realizados por termos conseguido promover um ambiente no qual respostas como essas tivessem espaço para serem colocadas e debatidas, e não sufocadas autoritariamente.
A reivindicação para a abertura das salas indica a necessidade de mais acessibilidade, mas uma breve pesquisa pela história dos eventos da ABPMC pode comprovar o quanto de acessibilidade vem se produzindo ao longo dos anos. Quem chega agora na área pode não conseguir apreender a dimensão das mudanças que o evento teve nos últimos 10 anos. O evento ser feito numa universidade pública propiciando acesso a no mínimo 100 de seus alunos (fora as outras iniciativas inclusivas já citadas) que talvez não tivessem acesso de outra forma a essas discussões é algo de uma relevância que não pode ser ignorada.
E, por fim, o mais importante foi vivenciar este debate na construção prática do nosso evento. As 70 pessoas que acompanharam o final da Assembleia podem falar por si mesmas do que viveram. Quem não esteve pode acompanhar pela ata. Vivemos num mundo muito fluido de informação. Pedimos que quem quiser se informar o faça de forma coerente, conversem entre si com os associados que estavam lá presentes, troquem experiências, leiam a ata que contém a descrição de todos os fatos ocorridos. Estamos muito tranquilos de que mediamos os debates com o repertório que tínhamos, sempre tendo em vista transformar a situação em ambiente para construção de uma área melhor, mais justa e mais democrática. Entendemos também que o contexto atual requer que ampliemos cada vez mais este nosso repertório e desta forma estamos caminhando, escutando e aprendendo a cada dia.
Produzir mudanças é um processo cansativo, mas como gestão estamos unidos e fortes. Seguiremos firmes nessa proposta que sempre defendemos desde quando não estávamos dentro da diretoria: produzir uma área socialmente relevante e democrática e mais uma vez reafirmamos que entendemos os bônus e ônus de estar mexendo nestas engrenagens de dentro do sistema. Ocupamos, resistimos e estamos produzindo mudanças. Demos passos importantes nesse sentido, e aqui se inclui todos que vivenciaram e que puderam participar deste rico e intenso debate.
Importante registrar nossa admiração e apoio às associadas que ocuparam seu lugar no debate com seus posicionamentos e resistiram na assembleia. Elas foram fundamentais para que todas estas reflexões pudessem ser compartilhadas com a comunidade neste pós-evento. Gostaríamos de convidá-las para trabalhar nas comissões e se engajar na associação para garantir que estas pautas continuem a evoluir na história da ABPMC. Juntos, somos mais fortes.